Nunca esquecer: um privilégio ou um fardo? A australiana Rebecca Sharrock, 27 anos, convive com uma síndrome raríssima, denominada Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM, na sigla em inglês), condição em que o paciente não esquece quase nada do que aconteceu em sua vida, inclusive memórias de quando tinha poucos dias de idade.
Pessoas como Rebecca têm a capacidade de lembrar fatos muito antigos com precisão de data e horário. Especula-se que há no mundo menos de 80 pessoas com esta síndrome. Além de HSAM, a australiana também é portadora de outros dois distúrbios: transtorno obsessivo compulsivo (TOC), que causa ansiedade e confusão mental em Rebecca; e autismo, que torna seu aprendizado um pouco mais lento.
O neurologista Daniel Paes Santos afirma que o estudo do funcionamento de memórias como a de Rebecca pode agregar informações relevantes para a pesquisa de doenças como o Alzheimer, uma vez que o espectro de formação da memória é a base para o entendimento do processo patológico. “Entender como a deposição de proteína beta amiloide afeta o processo funcional de formação da memória requer o próprio entendimento desta função, incluindo como as emoções podem influenciar neste processo”, complementa o neurologista.
Em entrevista à equipe do Portal Health Connections, a australiana conta um pouco sobre como é conviver com a síndrome, fala sobre suas lembranças, seu estilo de vida e artifícios que a ajudam a organizar-se mentalmente.
Entrevista com Rebecca Sharrock - Parte 1
Health Connections – HC: Quando você percebeu que outras pessoas não tinham o mesmo potencial de memória que o seu?
Rebecca Sharrock – RS: Durante parte da minha vida, pensei que todos se lembravam de tudo da mesma maneira que eu. Eu me sentia confusa sempre que muitas pessoas diziam que não conseguiam se lembrar de um certo evento de seu passado. Em 23 de janeiro de 2011, meus pais me mostraram uma reportagem na televisão sobre um grupo de seis pessoas que se lembravam todos os dias de sua vida desde que eram crianças. Os repórteres estavam descrevendo suas lembranças como “incríveis” e eu me virei para meus pais, confusa, querendo saber o porquê de eles os chamarem assim. Meus pais, então, me disseram que eles acreditavam que eu tinha HSAM também.
HC: Quando você foi diagnosticada?
RS: Entramos em contato com a instituição que estava estudando as pessoas da reportagem, a Universidade da Califórnia, Irvine, e, durante dois anos, fiz testes com eles pelo Skype. O Professor James McGaugh e o Professor Craig Stark me diagnosticaram como portadora de HSAM em maio de 2013.
HC: Você tem filhos? Em caso afirmativo, como eles lidam com o fato de que você nunca esquece nada?
RS: Eu não tenho filhos e não tenho certeza se quero ter. No entanto, se eu tiver um filho, a criação que darei a eles será influenciada pelas minhas próprias lembranças de como é ser uma criança.
HC: Como seria isso, a que detalhes atentaria?
RS: É muito importante que todos saibam que a interação com pais é necessária durante toda a infância. Muitos pais trabalham e têm outras crianças a cuidar, portanto, não é possível que interajam pessoalmente com seus filhos o tempo todo. Mas eu penso que interagir com crianças sempre que possível – por meio de conversas e jogos – é necessário para o bem-estar emocional e o crescimento social/pessoal desse futuro adulto. A televisão e os computadores entretêm crianças e vale a pena serem utilizados, com moderação. Mas a tecnologia não fornece a mesma conexão emocional e pessoal que a interação humana.
HC: Como foi na escola, a reação de professores com um aluna como você em sala de aula? E a reação de seus colegas de escola?
RS: Durante a época escola, eu sempre fui boa em soletrar. Aos seis anos eu costumava corrigir a ortografia dos professores enquanto escreviam no quadro-negro. A professora, então, dizia à minha mãe o quão constrangedor era ter um aluno da primeira série corrigindo a ortografia de um professor.
HC: Por se lembrar de tudo, você sempre foi boa nas provas, por exemplo?
RS: Muita gente se surpreende quando ouve que nunca fui bem em nada além de ortografia na escola. Apesar de lembrar de todas as minhas lições, meu autismo me fez muito mais lenta no processo de aprendizagem. Então, muitas vezes, brinco que existiria a possibilidade de ter obtido notas melhores se eu realizasse os testes três meses depois.
HC: Qual profissão você decidiu seguir? A síndrome ajuda você nisso?
RS: Eu escrevo livros, escrevo em um blog para a SpecialKids.Company e falo para o público de escolas e centros de saúde mental. Acho que o HSAM me ajuda muito com a lembrança de scripts para discursos. Além disso, escrever sobre minhas experiências pessoais em livros e blogs soa mais natural para mim, porque minha maneira de processar informações é semelhante à forma como escrevo.
HC: Suas memórias atrapalham seu sono?
RS: Minha mente revive involuntariamente memórias o tempo todo. Então, naturalmente, isso interfere no meu sono. No entanto, acho que, quando mantenho a mente estimulada pela luz ou por algum ruído, distraio-me e adormeço facilmente. Quando criança, eu também aprendi a recitar os livros de Harry Potter mentalmente para que eu pudesse dormir em silêncio com os olhos fechados. Isso funcionava muito bem para mim.
HC: Quais são suas atividades favoritas?
RS: Além de escrever e de falar em público, gosto de tudo relacionado ao Harry Potter, montar projetos de Lego destinados a adultos e visitar a Disneyland sempre que viajo para a Califórnia.
Essa entrevista é a primeira de uma série de reportagens que faremos sobre a “síndrome da super memória”, focando na história da paciente Rebecca Sharrock. Na próxima semana, confira a segunda parte do material aqui no Portal Health Connections.
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